quinta-feira, 30 de setembro de 2010

V Mostra de Vinhos, Amêndoa e Stocks - é HOJE!

Numa realização da ACIM (Associação de Comerciantes e Industriais de Moncorvo) com parceria da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, é hoje inaugurada no pavilhão gimnodesportivo da Corredoura, nesta vila, a V Mostra de Vinhos, Amêndoa e Stocks do concelho.
Como costuma acontecer, os visitantes poderão petiscar ou jantar nos "stands" das merendas instalados no recinto e aí provar as boas iguarias da região, até Domingo.
Por momentos esqueça a malfadada crise e apoie o comércio local - não falte!!!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (21)

O vinho

O Ti Carraspana, que Deus tem, e que lá esteja muitos anos sem nós, gostava do palheto que todos os anos colhia na pequena vinha que tinha lá para as bandas do Chavascal. Gostava tanto que, talvez por isso, foi-se desta para melhor ainda na flor da idade. Durante os primeiros anos de casado, ainda se aguentou no trabalho, mas à medida que o tempo foi passando o vício foi-se entranhando no corpo e, por fim, já ninguém lhe estranhava nada. Contavam-se as mais variadas peripécias, umas seriam verdade, outras mentira, mas, seja como for, ele bem podia ser considerado o bobo da aldeia.
Não parava em casa. Até parecia que tinha medo que lhe caísse em cima. Durante o dia ninguém o via, à noite, depois de cear, lá ia ele. Aquilo já nem era ceia, era um pisco a comer, uma malga de caldo, e pronto. Ele nem dormia bem se não fosse fazer serão ao café Central. A mulher não dizia nada, já não valia a pena falar. Quando vinha para se deitar, sempre tarde e mal, raramente chegava escorreito, umas vezes mais, outras vezes menos, umas vezes com um grão na asa, outras de caixão à cova, mas não lhe perdoava. Tinha uma coisa boa: não tinha maus vinhos, estava sempre tudo bem com ele, tudo se lhe assentava.
Uma noite, chega a casa mais cedo que o costume, pé ante pé, tão devagar que quando a mulher se apercebeu da sua chegada já ele estava a entrar pelo quarto dentro. Com o desembaraço que se lhe conhecia adverte-o logo:
- Ó home, tu não acendas a luz que me dói tanto a cabeça.
Ele assim fez. Às escuras descalçou as botas e atirou com a roupa para cima da cadeira que trastejava o acanhado quarto. Enfiou-se na cama, encostou-se à mulher e, ainda com algum tino, apercebeu-se que há um par de pés a mais, na cama.
- Hum… ó mulher estão aqui outros pés!
- Estão nada, são os meus, tu é que não estás bom da cabeça… Dorme e pronto!
O Ti Carraspana, por instantes, fica naquilo que lhe parece, permaneceu calado durante breves minutos, já a mulher pensava que o tinha convencido. Enganou-se. Depois de confirmar novamente que existiam, efectivamente, três pares de pés na cama, volta a insistir:
- Ó mulher tu não me enganes, está mais alguém deitado desse lado da cama? Já vou acender a luz.
home do diacho, tu não estás bom da cabeça. Tu não faças isso que me dói tanto a cabeça.
Mas ele não quis saber. Ergueu-se e, cambaleando, acendeu a luz. A mulher, já não sabia o que fazer, sabe Deus o que lhe passaria pela cabeça. Sabe Deus que crimes horrendos iriam acontecer naquele quarto. Então, o Ti Carraspana, ainda com a luz de 80 voltes a ferir-lhe os olhos, vira-se para a cama e, de forma desconcertante, avisa-os:
- Ó Sr. Américo, não é que eu me importe, isto é só para ela não ser teimosa.

ANTÓNIO SÁ GUÉ

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O pote das migas

À falta de cricos, provei estas migas de tomate, também elas uma delícia.


As Migas de feijão "piqueno"

Por sugestão de uma das últimas postagens, quis saber mais um pouco sobre as Migas de Cricos da Vilariça. Felizmente, a minha fonte, a caminhar para os noventa anos, foi lavrador na Vilariça e recordou-me perfeitamente a confecção desse sabor. Começavam por fazer uma pequena cova na terra e no topo espetavam um pau onde penduravam uma caldeireta com os seguintes ingredientes: uma ou duas batatas cortadas aos pedacitos, água, vagens de feijão crico ainda tenras, alguns feijões mais grados, já escarolados, e um pouco de carne, presunto, salpicão, se houvesse. Quando já estava tudo cozido, iam-se colocando fatias de pão até ficar tudo no ponto.
Para fazer a fogueira, utlizavam-se ramos secos de salgueiro, ameeiro, canas do milho e feijoeiros secos.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vindima

Ao longe, na encosta do Roboredo, a Ermida da Senhora da Teixeira abençoa mais uma colheita.

Depois de cortadas para os sacos plásticos, mais leves que os antigos cestos vindimos, as uvas esperam que alguém as carregue para a carroça que as levará até ao "enorme cesto de ferro".

E o peso não é brincadeira, porque todo o suminho fica retido no saco!

Enquanto a carroça fica com a tara certa, o macho vai antecipando a poda.


E não precisa de tesoura!

O tradicional espera que se encha a barriga ao moderno.
Fotos: João Costa
Local: Sequeiros, T. Moncorvo
Data: 19-09-2010

domingo, 19 de setembro de 2010

Quadros da Emigração - Imigração

Chegou-me a notícia de Trás-os-Montes de que o Ti Malapeira já não se “astreveu” com a apanha da amêndoa. Chamou os “búlgaros” à jeira e pagou-lhes a jorna a 9 contos, sem almoço incluído. Este ano a amêndoa ainda não ficou nas amendoeiras...


Aguarela de Cristina Borges Rocha

O Malapeira: personagem de Outros Contos da Montanha e símbolo do apego ao terrunho.

sábado, 18 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (20)

O banho

Este quadro de uma transmontaneidade já passada, mas que existiu, e que, tal como todas as outros, moldou a nossa identidade, podia, perfeitamente, começar assim: “No tempo em que poucos tinham casa de banho…” Mas não, vou iniciar pelo outro lado, o lado das pessoas.
A tia Maria das Dores era o homem da casa. Nada lhe metia medo, o seu aspecto franzino não condizia, em nada, com o trabalho que todos os dias executava. Desde o alvor do dia até à noitinha, era uma labuta constante. Além do amanho da casa, ela lavrava, ela semeava, ela cavava a vinha, o toro das amendoeiras onde a charrua não podia chegar, fazia tudo. Nunca se lhe conheceram grandes andrajos. A figura era sempre a mesma, um lenço preto que usava de Verão e de inverno atado na coroa da cabeça, uma saia preta, rodada, e depois uma blusa também preta com umas flores brancas muito miudinhas. Era a vestimenta de todos os dias, quer fosse Verão ou Inverno, feriado ou dia santo de guarda.
O homem, o Ti Alberto, menos desembaraçado, andava sempre atrás dela, como se ela fosse o motor de toda aquela labuta. Ele era tão trabalhador ou mais que ela, mas aquela sua indolência levava-o a andar sempre na retaguarda da Maria das Dores, em todos os aspectos, entenda-se.
O único dia de descanso daquelas duas almas era o dia da festa. Nesse dia não havia horta, nem vinha que os arrancasse de casa. O dia gastava-se entre o ver passar a banda na arruada da manhã, o cozer as batatas com algum conluio mais avultado, e como não podia deixar de ser, tomar banho na velha bacia de folha, que só tinha essa serventia.
Nesse dia de festa, a Tia Maria das Dores, depois de apajear o marido, como gostava de dizer, depois de lhe aquecer a água na caldeira de escaldar as nabiças, não fosse ele constipar-se, depois de lhe colocar a bacia a jeito e a fatiota domingueira em cima da cama, foi dar duas de conversa com as vizinhas que, à sombra das casas fronteiras, se regalavam com uma brisa refrescante que se levantou de repente.
Já lá ia uma boa hora, e o raio do homem não aparecia à porta a mostrar o fato que tinham mandado fazer ao alfaiate, há um bom par de anos. O tempo transcorrido era tanto que já o caso começava a preocupar a Tia Maria das Dores.
“Será que lhe deu alguma congestão?”, pensava, “será que que se deixou afogar no raio do alguidar?”, e assomava-se-lhe um sorriso trocista nos lábios, curtidos pelo Sol e pelo vento.
Estava ela nesta cogitações quando o ti Alberto dá sinal de vida. Vem à janela, tronco nu, e pergunta muito sério como se tivesse de resolver o maior problema de toda a sua vida:
- Ó Maria, por onde é que começo?
A mulher que de imediato percebeu tudo, que de repente o imaginou durante uma hora, ou mais, ora a temperar a água, ora a colocar o pé direito, ora a molhar o pé esquerdo sem conseguir decidir qual a parte do corpo a lavar primeiro, respondeu-lhe muito arreliada:
- Pela ponta da gaita, c…

ANTÓNIO SÁ GUÉ

Caldo de cricos

Aproveitando o mote do feijão pequeno, lembro aqui a sopa ou caldo de cricos que, pela primeira vez, saboreei em Moncorvo. Este caldo tem a particularidade de ser cozinhado em pote de ferro, à lareira, e os ingredientes são tão simples quanto isto: água, sal, batata, cebola, cenoura ou tomate e vagens tenras de feijão crico partidas à mão em pequenos troços. No final, leva um fio de azeite.
O sabor da simplicidade!

Confraria de Bem Comer - recolhas gastronómicas

Recebemos notícia do nosso amigo Carlos Manuel Ricardo (mais conhecido por "Camané") que ele e um grupo de amigos estão a organizar uma Confraria de Bem Comer e Melhor Beber, já com estatutos e grupo musical de acompanhamento.
Um dos propósitos é a recolha de aspectos da nossa gastronomia regional, sua divulgação e promoção.
Pelo que ainda que seja fora de época, aqui deixamos uma receita de Páscoa (ou Pascoela), que o amigo Camané nos enviou, retirada de uma obra gastronómica muito conhecida, intitulada "Festas e Comeres do Povo Português", de que foi co-autor um moncorvense ilustre
: Afonso Praça (em colaboração com Maria de Lurdes Modesto e Nuno Calvet):

«EMPADA DE MONCORVO:

Esta bola ou folar da região de Moncorvo recebe o nome de Empada, marca a diferença na forma de armar. Há no entanto quem sustente que deverá ser oval como é o caso de habitantes da região de Mirandela onde recebe a designação de Folar e leva sempre galinha guisada e desossada.

Agora a receita dita pelo bom povo moncorvense:

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1kg de farinha

1 colher de sopa de sal

100g de pão em massa

2,5dl de água

25g de fermento de padeiro

8 ovos

1,25dl de azeite

125g de manteiga

500g de presunto

100g de salpicão

100g de linguiça (chouriça de carne)

50g de toucinho

1 ovo

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1. Peneira-se a farinha com sal para um alguidar;

2. À parte, desfaz-se o pão em massa com a água tépida, junta-se o fermento de padeiro e desfaz-se conjuntamente. Esta preparação é adicionada à farinha, misturando-se tudo;

3. Juntam-se os ovos, passados por água morna, o azeite e a manteiga. Amassa-se tudo, juntando ou mais farinha ou água tépida, de modo a obter-se uma massa com a consistência da massa do pão;

4. Põe-se a levedar, quando a massa se apresentar rendilhada (dobrou o volume) divide-se em duas partes, sendo uma maior e outra mais pequena. Estende-se a mais pequena em formato redondo do tamanho aproximado de um prato. Dispõem-se as carnes cortadas em fatias finas sobre a massa não devendo chegar aos bordos;

5. Estende-se então a segunda parte de massa e com ela cobrem-se as carnes metendo os bordos por baixo da primeira rodela de massa de modo a que as carnes não se escapem. Deixa-se a massa levedar novamente, pincela-se a superfície com ovo batido e leva-se a “EMPADA” a cozer em forno bem quente (200ºC).

Nota:

Querendo, pode usar-se uma forma redonda que deverá ser bem untada com manteiga».

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Nota de Camané Ricardo:

«Ainda não consegui a receita das famosas "migas de feijão pequeno à moda da Vilariça", como as preparava o saudoso Beto Castelo, e do “bacalhau à meu“ cujo autor foi o sempre saudoso Sr. Viriato».

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Ficamos a aguardar estas recolhas, e, tal como foi proposto, que as "migas de feijão piqueno" se declarem como prato oficial de Moncorvo, pois era o prato-forte dos jeireiros da Vilariça, noutros tempos.

domingo, 12 de setembro de 2010

Engaço II

Quem ainda não teve a oportunidade de observar estas miniaturas nas Exposições "Flora de Brincadeiras" e " Raiz de brinquedo", de João P.V. Costa, no Museu do Ferro e no Centro de Memória de Torre de Moncorvo, poderá fazê-lo no Centro Cultural de V. N. de Foz Côa até ao dia 30 de Setembro. Porque retirada da natureza, esta exposição renova-se constantemente.
Como curiosidade, estas alfaias agrícolas são conhecidas por ancinho (inchinho), em Alpendorada - M. Canaveses.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (19)

O engaço

O Manel Badio cresceu aos impontões de uns e de outros, cheio de cotras e ranho. Quando chegou a hora de carregar a vida às costas, e não foi muto tarde, foi para Lisboa. Alguém lhe prometeu emprego, e ele, meteu-se no comboio da tarde e lá foi para a capital do império. Por lá andou, por lá se amanhou, sabe Deus como.
Os anos foram passando, e ele foi-se acomodando à vida da cidade. Depois dos anos de vida limpa, já não limpava as candeias ao canhão do casaco, usava lenço de popelina, depois dos anos de vida limpa, já não urinava contra os muros, ia à casa de banho, depois dos anos de vida limpa, já não ia à taberna da Tia Maria Augusta, frequentava a “Chic de Belém”, enfim… a civilização penetrou-lhe no sangue, e aquele feitio arrufadiço, e de prosápia, que Deus lhe deu, também nunca o perdeu, diga-se em abono da verdade.
Cinco anos se passaram e o Manel Badio vem à terra pela primeira vez. Sentiu que tudo estava na mesma, sempre as mesmas pessoas, sempre a mesma labuta. Mas ele estava diferente, já não pertencia àquele mundo, ele era da cidade, era um verdadeiro emproado lisboeta, embora não o reconhecesse, como é lógico.
Era o tempo dos fenos, mês de Agosto, nessa altura a erva era gadanhada a todo o comprimento do lameiro, e depois de seca, era atada em grandes fachas pelos vencelhos que, durante uma noite, ficavam a humedecer na fonte da “Carreira da Fonte”. Para quem conhece as lides da lavoura sabe que o engaço é a peça chave para juntar o feno, ou seja, o ervedo já seco, e que seria a ceia das animálias ao longo da inverneira, que não tardava. É aqui que começa a verdadeira estória do engaço e é aqui que a basófia do Manel Badio veio ao de cima.
- Ó Manel dá-me cá o engaço, se fazes favor – pediu a ti Idalina, que por ali arengava, e reparara que o mesmo estava aos seus pés.
O Manel olhou para lados, fez que não viu aquele objecto dentado com um cabo comprido, e com cara de quem já não sabe o que é, pergunta:
- Engaço… o que é isso?
E no mesmo instante em que pronuncia “isso”, e mesmo antes de a Tia Idalina lhe responder, põe o pé num dos dentes daquele zangarelho que ali estava, e o cabo comprido bate-lhe com toda a força na sua testa estreita.
- Fonha-se lá o engaço – disse enquanto a esfregava com força, e o galo que crescia a olhos vistos.


ANTÓNIO SÁ GUÉ

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ANDORINHA

Ao abrigo do Programa Ciência Viva organizado pelo PARM surgem mais estes magros versos a libertarem-me a ânsia de ser aquela ANDORINHA!


ANDORINHA

Andorinha, andorinha
que não migras!

Que da esquálida caverna
espreitas os meses de invernia
no aconchego da bojuda galeria
e, hirta, conservas na lembrança
o sussurro mansinho
do marulhar das águas da ribeira
e a cantiga das cigarras a ondular
sobre as dobras gastas das montanhas.

Andorinha, andorinha
que não migras!

Que na Primavera
és a primeira a abandonar o ninho
para abraçares,
com a tua plumagem negra
e o branco do teu peito,
o lado oposto da escarpa,
carregando contigo a ponte invisível
da Fraga do Arco.

Andorinha, andorinha
que não migras!...
Fotografias: Ninho da Andorinha e Fraga do Arco cedidas pelo PARM.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Felgar, Festa de N.ª Sra.ª do Amparo, 1943

Aspecto da festa do Felgar de outros tempos - anos 60 (Arquivo particular)

Como nos foi prometido pela Drª. Júlia Ribeiro, em comentário ao "post" sobre a Festa do Felgar, aqui está o conto (verídico) sobre uma ocorrência da sua infância, na Festa do Felgar de há muitos anos:

Largo da Capela, pelas 9 horas da manhã.

Não sei se a festa nesse ano coincidiu com o meu aniversário. Sei que eu andava de palamenta rica: vestidinho vaporoso cor-de-rosa, com folhos e laços. As pessoas que vinham em grupos para a missa, diziam “Que linda boneca”. Eu olhava espantada, porque não via boneca nenhuma. A minha avó respondia “Muito obrigada”. Eu mais espantada ainda, porque aquelas pessoas não tinham comprado amêndoas nem licor. A minha mãe, radiante de frescura e felicidade, também respondia qualquer coisa que eu não entendia. Mais tarde soube que dizia : “A quem meu filho beija, meu coração adora”.

Mas vamos lá começar a prometida estorinha: andava eu por ali a brincar, de vestido cor-de-rosa, enquanto a minha mãe e a minha avó chamavam os fregueses, melhor dizendo, as freguesas, pois eram as mulheres quem tinha voto na matéria, “Ah, amiga, veja esta amêndoa! Olhai, qu’alvura, até os olhos cegam nela!” .

(A minha mãe e a minha avó vendiam amêndoa coberta, súplicas, cavacas , económicos e licor. Era uma forma de, em dois meses de verão, ganhar o dobro do miserável salário de camponesas durante os outros dez meses do ano).

Era antes da missa e do sermão que apareciam as boas freguesas: aquelas que queriam a amêndoa logo ao abrir dos sacos, sem um grão de poeira. Eram as que mandavam encomendas para os familiares nos Brasis, que nesse ano não tinham podido vir. Regateavam. Pagavam menos dois ou três mil reis, mas a minha mãe retirava-lhes cem gramas no peso. E toda a gente ficava satisfeita. Também vinham os próprios brasucas, mais as esposas, gordalhufas, cheias de cordões e anéis de ouro, para levar amêndoa coberta a patrões e amigos lá no Brasil. Pagavam com fartos rolos de notas que , impantes, desdobravam aos olhos cobiçosos dos menos afortunados.

Por último, já quase a missa a começar, veio um casal, aí nos seus trintas. Pediram um quilo de amêndoa, mas em três sacos, que em casa ela dividiria melhor. Depois da missa voltaram, fizeram festas à menina, que é linda c’mo sol e perguntaram se podiam levá-la a almoçar com eles. “Estamos ali, numa sombrinha atrás da capela”. “Muito obrigada, mas a minha filha não sai daqui”. “Que pena! Temos cabritinho assado no forno e um arrozinho... Até já estendi uma manta, para a menina não se sujar. Venha ver”. “Agradeço, mas já disse: a menina não sai daqui”. “Pronto, mulher, deixa lá” disse o homem. E virando-se para a minha avó ” Mas se estão com algum medo, a avó pode vir também e come connosco. Gosta de cabrito assado?”. A minha avó achou que não tinha mal nenhum. Pegou-me pela mão e fomos até à tal sombrinha. De facto, lá estava a manta estendida no chão . Não quis comer, disse-me “Porta-te bem” e voltou a manquitar para a venda da amêndoa que era onde fazia falta.

Mas a minha mãe não estava sossegada. “Vou lá espreitar”. Voltou numa corrida “O homem já dorme e a mulher está a dar pão-de-ló à menina”. E , mais descansada, continuou a apregoar as amêndoas branquinhas e o licor de canela.

Talvez tenha passado uma hora, talvez mais um pouco e a minha avó, sem dizer nada, foi espreitar. Lançou logo um grito que alvoroçou a festa. A menina, o casal, o macho tinham desaparecido. A gritaria da minha mãe... nem se consegue imaginar! “Roubaram-me a filha. Roubaram a minha menina”.

A Tia Maria Trovões foi logo chamar a Guarda que andava par ali. Parou a festa. Toda a gente, em grande alarido, foi buscar machos e mulas, até apareceram dois automóveis, mas estradas só havia uma e má. Homens e mulheres, raparigos atarantados, pelo meio cães a ladrar desorientados... A Guarda Republicana pôs-se à frente daquele povo e meteram-se por veredas e carreiros. A uns cinco ou seis quilómetros encontraram o casal. Eu ia a cavalo no macho toda contente.

Veio tudo para o posto da Guarda de Moncorvo. A Tia Trovões e as filhas ficaram a tomar conta da mesa da minha mãe. No posto da Guarda a mulher, por entre lágrimas, gritos e soluços, explicou que não tinha filhos, que não podia ter filhos. A minha mãe e todas as mulheres presentes tiveram pena dela. Mas o mais extraordinário foi quando o tenente da Guarda disse ao casal : “Mas vossemecês estavam convencidos que nós não vos encontrávamos? “ e o homem, até aí calado, respondeu: “O mundo é muito grande! “ Pela cabeça de todos passou a mesma ideia “ Brasil” . Com algum espanto, o tenente perguntou-lhes : “Então vossemecês onde vivem?” “Em Mazouco” , foi a resposta.

por: Drª. Júlia Guarda Ribeiro "Biló"

sábado, 4 de setembro de 2010

Palestra sobre Geologia trasmontana no Museu do Ferro, hoje à tarde:

O Professor Doutor Fernando Noronha (do Centro de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto) é um eminente geólogo que dispensa apresentações. Já esteve diversas vezes no Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, inclusive como conferencista.
Hoje vem falar-nos sobre "Os Xistos de Trás-os-Montes como recurso geológico".
Atendendo aos seus dotes de comunicação, podem ter a certeza de que apesar da cientificidade do tema, o Professor o tornará acessível e atraente.
A palestra realiza-se no Auditório do Museu, com acesso pela porta do rés-do-chão, nº. 7, do Museu.
Entrada livre - a não perder!

Ver ainda:

Sobre a palestra:

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (18)



A Candeia

O Ti Marcolino, que Deus tem, tinha uma sagacidade, uma agudeza de espírito que apelido de pícara, mas sem a conotação de patife ou velhaco que, eventualmente, a palavra possa ter. Aquela sagacidade genuína, que já nasce com a pessoa, talvez, ou então, que se aprende ao longo dos anos de uma vida de trabalho intenso. Vamos chamar-lhe malícia benigna.
A explicação, que se impõe, vem a propósito de um pequeno episódio, que podia ser anedótico, mas em boa verdade não é.
A outra personagem da estória é a D. Aninhas, o oposto de pessoa. Mulher na casa dos 50, ou mais, solteirona, rica, muito compenetrada das suas virtudes, muito próprias,era tão arreigada aos preceitos religiosos que pode, talvez, apelidar-se de beata.
O Ti Marcolino, nesse dia, tinha sido chamado à jeira para pisar as muitas arrobas de vinho que tinham sido colhidas nos dias anteriores. O pio ficava acantoado na farta mas escura adega. A luz de um dia setembrista, já de si nebuloso, entrava apenas por uma porta pequena, que ficava lá ao fundo, e dava acesso ao quintal interior. Naquela obscuridade sobressaía a luz de uma candeia, dependurada na parede, junto ao pio, onde quatro homens desde as oito da manhã, entre eles o Ti Marcolino, davam voltas e mais voltas no pio porque o precioso néctar assim o exigia. Ao longo da parede esquerda percebia-se a silhueta (e notava-se porque os olhos do jeireiros já estavam adaptados aquela obscuridade), de seis bojudas pipas, de muitos almudes, alinhadas, onde a D. Aninhas fazia pequenos preparativos que haviam de facilitar a trasfega do vinho.
O Ti Marcolino pedia aos anjos e a todos os santos que a D. Aninhas desse por finda a tarefa e deixasse de por ali cirandar, mas ela, nada! Por ali continuava, ora para trás, ora para a frente, um pouco alheada do que se passava à sua volta. O Ti Marcolino, farto de esperar, não está com meias medidas, apaga a candeia e, ali mesmo, no canto, virado para o lado de fora, alivia a bexiga. A D. Aninhas, a crer que alguma rabanada de vento tivesse apagado a única fonte de luz, vai, lentamente, tacteando, dir-se-ia às apalpadelas, em busca da candeia.
De repente ouve-se um “ai” medonho, vindo das profundezas da alma.
Com a tal agudeza de espírito, que falei inicialmente, o Ti Marcolino ao sentir as mãos da venerável senhora nas partes mais íntimas responde-lhe:
- Queimou-se minha senhora, agarrasse pelo gancho que o bico estava quente!

ANTÓNIO SÁ GUÉ